17 de jan. de 2010

sobretudo, para estar com alguém, é preciso aprender a amar.



Primeiro vem a descoberta das afinidades e a explosão da paixão. Depois, alguns casais simplesmente não se aturam mais - enquanto outros constroem um relacionamento vivo e gratificante.
A psicoterapeuta LIDIA ARATANGY fala sobre o fator que explica percursos tão diferentes

De repente, no meio do burburinho da festa de fim de ano, Fernanda sentiu o tuiiimmm. Ela conversava fazia menos de meia hora com o novo colega, mas não podia haver dúvidas: estava diante do homem da sua vida! O entrosamento entre ambos parecia mágico, tinham os mesmos gostos e opiniões - aceitaram e rejeitaram praticamente os mesmos salgadinhos. E Pedro era capaz de se antecipar até à sua sede - pois, quando ela se virou para procurar o garçom, Pedro já lhe estendia a taça de champanhe sem que ela dissesse uma palavra! Aquele relacionamento já nascia pronto e os próximos encontros confirmaram a primeira impressão. Em poucos meses, estavam casados. E felizes. Então, houve o grande desencontro. Pedro chegou em casa depois de um dia de trabalho tenso. E na conversa que tiveram cada um falou no seu idioma:

FERNANDA ? Oi, tudo bem?
PEDRO ? Tudo bem.
FERNANDA (desconfiada) ? Tudo bem mesmo? Você não está com cara de tudo bem...
PEDRO (constrangido) ? Não há nada de errado comigo, já disse que está tudo bem!
FERNANDA (aflita) ? Alguma coisa deve ter havido para você estar assim estranho!
PEDRO (irritado) ?Não houve nada! Só estou cansado, quero ficar um pouco sossegado no quarto, não se preocupe.
FERNANDA (solícita) ? Quer que eu prepare alguma coisa pra você?
PEDRO (aos berros) ? Pára com isso! Não quero nada! Me deixa em paz!
Mas por que se cavara tamanho abismo entre eles? Por que os dois se sentiam desamados e incompreendidos, incapazes de entender a repentina quebra de comunicação entre eles? Não basta o encantamento do primeiro encontro: é preciso aprender a amar.

No início de um relacionamento amoroso, os parceiros procuram e reforçam sinais que confirmam a fantasia de que têm um encaixe perfeito. As afinidades são valorizadas e as mais estranhas alegações são feitas para reafirmar que os apaixonados são uma única alma em dois corpos: "Ele adivinha meus pensamentos, não preciso terminar a frase para que me entenda!" Ou: "Você acredita? Ele também detesta suco de caju!"

Dificilmente um casal se forma sem passar por essa etapa. Mas nenhum casal tem chance de desenvolver e aprofundar o relacionamento se não for capaz de ultrapassar essa fase e de encarar as inevitáveis diferenças. Afinal, nem todos os nossos pensamentos são óbvios e os sabores de sucos são variados demais para que os parceiros sempre concordem em suas preferências e ojerizas. Então, à medida que a intimidade aumenta, a comunicação entre os parceiros se complica - e eles acabam por descobrir que não falam a mesma língua.

A linguagem do afeto não é universal. Nosso modelo de amor deriva dos vínculos afetivos que conhecemos nos primeiros tempos de vida, na linguagem sutil, cheia de meios-tons, que impregna o relacionamento da mãe com seu bebê. A maneira como ela o pega e acaricia, o tom de voz que usa para se comunicar com ele, o olhar que lhe dirige quando o limpa, veste, desveste - tudo isso é captado pelo bebê, que aprende, por meio desses sinais, o que é amar, o que significa ser amado. A partir daí, a criança estabelece internamente um código da linguagem do afeto, montando uma espécie de glossário, no qual o amor é definido como aquilo que os pais sentem por ela - e os sinais que expressam esse sentimento são os que ela percebe no contato com os pais.

Fernanda, por exemplo, estava acostumada a encontrar a mãe à sua espera quando voltava da escola. As pessoas de sua família têm o hábito de falar abertamente sobre o que sentem e acreditam que a intimidade se tece a partir desses momentos de encontro, quando as emoções são expressas, compreendidas e partilhadas. Na casa de seus pais, o afeto se traduz por uma preocupação com os sentimentos, um cuidado em entender o que se passa com o outro e um carinho para mitigar suas aflições. Na família de Pedro, os afetos percorrem caminhos diferentes. Lá, o valor maior está em respeitar a individualidade do outro, em não invadir seus sentimentos, para que as pessoas da família se sintam independentes e livres para expressar emoções quando e como acharem melhor.

Isso não significa que Fernanda seja mais amada do que Pedro nem que a mãe de Pedro seja indiferente às emoções de seu filho. Significa apenas que as duas famílias têm diferentes códigos para a linguagem do amor. Infelizmente, o parceiro não vem com uma bula pendurada no umbigo, em que a gente possa ler o código no qual ele esteve imerso durante a infância. Tudo seria mais fácil se houvesse uma espécie de manual de instruções explicando o significado de cada gesto, as indicações e contra-indicações, os efeitos colaterais etc. Como não existe nada desse tipo, é preciso reconhecer que o vínculo não está pronto como se queria acreditar: a tarefa de decifrar o código de amor do parceiro apenas começa quando o casal se forma.

O cinema nos ensina que é possível aprender a amar. No primeiro filme sobre o conto A BELA E A FERA, de 1946, Jean Cocteau nos faz amar Jean Marais no papel da Fera sem ao menos transformá-lo em príncipe. Como a Bela, ficamos apavorados quando surge aquele animal grotesco, de pêlo longo e áspero e garras pontiagudas. Mas nos comovemos, como a Bela, quando a Fera passa a visitá- la em seus aposentos, todas as noites, para falar de sua solidão, sem jamais fazer um gesto mais brusco ou uma entonação de voz agressiva: apenas, antes de se retirar, pedia a moça em casamento. Bela, delicadamente, declinava do pedido, mas este a cada vez parecia menos absurdo - tanto para Bela quanto para a platéia, cujas emoções vão se modificando de tal forma que, ao final do filme, estamos todos totalmente entregues ao olhar apaixonado e aos desajeitados gestos de ternura da Fera.

Outro mago do cinema, nos submete ao mesmo processo. A primeira impressão provocada pela imagem do E.T. é de susto diante de sua figura grotesca, de repugnância por sua pele de réptil. Com o correr do filme, tudo muda de significado: ficamos inundados de ternura por aquele serzinho desamparado, cada espectador quer segurá-lo no colo, aquecê-lo, protegê-lo. E isso Spielberg consegue sem mudar absolutamente nada na figura do E.T., nem sequer a iluminação que incide sobre ele. Toda a mágica se faz na nossa maneira de enxergar e entender a personagem.

Pois muitas vezes, no meu trabalho de terapeuta de casais, tenho a impressão de assistir a filmes como E.T. e A BELA E A FERA passados de trás para a frente: me vejo diante de histórias que começam no encantamento para, não raro, desembocar na repugnância e no horror. Na maioria dessas histórias, encontro nos parceiros a mesma perplexidade diante da deterioração de um vínculo que ambos prezavam - mas do qual ambos descuidaram, por desencanto ou distração.

Remonta aos gregos o mito do ser hermafrodita, que, cortado ao meio, viu-se condenado a passar a vida em busca da metade que lhe devolveria a completude. Viria daí a imensa necessidade do ser humano de procurar pelo parceiro certo para sentir-se enfim inteiro.

A idéia sobrevive até nossos dias praticamente sem transformações: continuamos a acreditar que existe um outro que nos completa, sem o qual permanecemos como inválidos, incapazes de dar conta de nossa fragilidade. Ao encontrá- lo, já não precisaríamos fazer mais nada, a não ser descansar à espera da conseqüência natural: "felizes para sempre". Expressões como "a metade da minha laranja", "minha cara-metade", "feitos um para o outro" confirmam o mito e reforçam a idéia de que, uma vez formado o casal, a relação amorosa estaria pronta e acabada. Ledo e perigoso engano.

As pessoas que se prendem a essa fantasia tendem a desistir do relacionamento diante da primeira dificuldade, guiadas pela crença de que, se o encaixe não é perfeito, houve engano na escolha do parceiro. Algumas passam a vida nessa busca, outras optam por relações episódicas, sem intenção de continuidade ou aprofundamento. Os casais que têm mais chance de permanência são os que se dão conta de que a perfeição não faz parte do universo dos humanos - e se dispõem a batalhar para tornar o relacionamento vivo e gratificante, abertos à descoberta de si mesmos e do parceiro.

Difícil é a tarefa de revolver e adubar esse chão, tantas vezes calcinado por mágoas e ressentimentos. É preciso mantê- lo poroso e fértil, livre das ervas daninhas, que aí medram com facilidade. Lavrar o território afetivo é cotidiano trabalho para toda a vida. Mas o aprendizado do amor não é mesmo tarefa para preguiçosos nem distraídos.